sexta-feira, 12 de março de 2010

Ensaio ao pessimismo

Nunca estivemos tão perdidos na vida. Parece que a última reza foi profetizada há séculos. É difícil encarar a realidade nua e crua das ruas e dos lugares mais distantes das formas de ser. Então, perdemos o fio de Ariadne, o fio condutor. O mundo não sobrevive. Apenas na sofreguidão vamos levando esta tramoia, esta ilusão.

É tudo tão claro e escuro ao mesmo tempo. Ninguém vê ninguém. Claro, apenas o sol que esquenta as ideias e deixa o homem mais ambicioso na sua jornada. Os neurônios se esvaiam e deixam em seu lugar o vazio pensamento humano.

Escuro, somente à noite. Que mentira. O dia nem começou e escuro estão os lugares onde perpassam a miséria do homem. A criança da rua, o homem parado no sinal, os engravatados nos escritórios com ar condicionado, as moças e suas sacolas no shopping. A escuridão está em voga, a clareza também. Não pensem que a consciência humana não sabe o que acontece.

Sabe sim, mas tem medo e preguiça de agir. Estamos mergulhados no marasmo, mortos na água parada, afogados em lágrimas. Humanos, o nome é apenas mais uma designação do que somos. Humanos como agimos, não mais.

Homens acostumados com a dor. A bala que sai da arma não é mais uma ameaça, mas a glória. A palavra divina do conhecimento banida, por vezes proibida. Pensadores esquecidos, conhecimento estático. A forma como agimos e como nos sentimos é todo o reflexo de um mundo sem volta, frio, inóspito, hostil.

Menino de rua

Aquele quadro pregado na parede da casa da minha tia sempre me chamou atenção. Não somente pelo fato de ser engraçado, mas também por ser de uma arte kitsch. A pintura retratava um menino de rua em pé, com um olhar de cão abandonado. Ao seu lado, sentado, outra criança, provavelmente, seu irmão.

O quadro era a piada de toda família. Toda vez que minha tia via a pintura, soltava uma gargalhada, não por maldade ou insensibilidade, mas o motivo pelo qual a fazia reagir dessa forma era a figura esdrúxula que despontava na parede. O menino de rua era um menino mal vestido, com um olhar tristonho e cansativo, maltratado pelo pouco tempo de vida.

Aquele quadro, anos e anos, ficou na minha mente como uma lembrança engraçada da infância. Hoje, sinto por ele algo que não consigo definir. Não é mais cômico, fantasmagórico nem mesmo insulto à arte de vanguarda. É na verdade algo que simboliza a tristeza de uma criança abandonada. Vejo nele a pura realidade dos grandes centros urbanos.

A fome, o abandono, o cansaço, a negligência, enfim, tudo que vejo naquele quadro está ressaltado nas ruas de minha cidade. Meninos de ruas pintados ou não, engraçados ou não, sozinhos ou acompanhados, são meninos de rua. Talvez nunca deixem de ser.

Moram nas ruas e morrem nas ruas. Saberá a quem estes meninos de rua pertençam. Os pais nem existem, família muito menos. O que estas crianças esperam do futuro? O mundo das drogas ou da criminalidade? Talvez não ou talvez sim. Visão pessimista minha, mas também visão realista.

Aquele menino de rua nunca foi tão mal tratado por uma geração. Mal sabíamos o quanto estávamos sendo desonestos com ele. Sinto culpa e ao mesmo tempo pena e desolação. Não pude fazer nada para impedir tanta humilhação àquele menino.

Retorno à casa da minha tia e aquele quadro já não é tão chamativo quanto antes. Nem está mais na sala. Está no quarto escuro dos fundos da casa. Fui ao cômodo e vi todo empoeirado aquele menino de rua. Pensei em ri, mas em respeito àquela figura, optei pela seriedade. Tantos anos e tantas pessoas riam dele. Era uma espécie de reencontro. Dessa vez não havia felicidade, só minha boca seca, como se estivesse vendo a morte de perto.

Pensei em adotar aquele quadro. Salvar aquele menino. Até o faria se não tivesse feito isso com um menino de rua de verdade. Manoel era ele. O menino de rua que adotei quando ele tinha cinco anos. Encontrei-o sentado ao lado de seu irmão morto. Ninguém descobriu quem o matou. Levei o Manoel para casa e o alimentei por dias. Hoje, ele tem 11 anos. Estuda e brinca como toda criança normal.